06/05/09

That's konec, amiguinhos!

Quando a televisão e a banda desenhada eram os pratos principais da dieta cultural das crianças, na segunda metade do século XX, havia muitos adultos que lamentavam o facto e choravam pelo fim da "cultura escrita". Mas havia também quem defendesse que a "cultura visual" tinha os seus méritos, a sua história, a sua forma de nos introduzir à riqueza do mundo. Essa foi a missão de Vasco Granja.
A tarefa era dificultada por estarmos a falar de "artes menores" - se se tratasse de quadros em museus toda a gente entenderia melhor o argumento. Mas Vasco Granja fez a revolução que tinha a fazer com humildade e bonomia. De tal forma que há gente que ainda não entende o alcance dela.
O papel de Vasco Granja não foi trazer-nos o cinema de animação experimental ou o cinema de animação comercial. Foi trazer-nos todo o cinema de animação que ele achava inventivo, original, estimulante. Ele falava com o mesmo empenho e encanto de Tex Avery como do mais recôndito realizador checo, da Pantera Cor-de-rosa como dos filmes do canadiano National Film Board.
Porque, para ele, todos mereciam o seu empenho e encanto.
Sim, muitos miúdos desesperavam por ver chegar a palavra "konec", que assinalava o fim das animações nas línguas eslavas, e entristeciam-se quando aparecia o "that's all folks!" com que terminavam as animações da Looney Tunes. Mas a ideia era mesmo essa: dar variedade, amplitude e pluralismo. Juntar a arte de vanguarda com a arte de massas, como talvez pensasse Vasco Granja, ou a alta e a baixa cultura, ou o divertimento fácil e o pensamento difícil, até ao ponto em que se tornasse claro que as fronteiras entre ambos são - sempre foram - incertas.
Vasco Granja já tinha feito isso com a banda desenhada, como vim a saber depois. Foi depois de ter já visto centenas de vezes os desenhos das revistas Tintin dos meus irmãos, quando me resignei finalmente a ler as páginas que pareciam enfadonhas, porque eram a preto e branco e "só letras". Foi então que descobri, entre o espanto e a admiração, que elas eram escritas pelo mesmo Vasco Granja, e que ele ali me explicava tanta coisa sobre os mesmos Hergé, Edgar-Pierre Jacobs e Goscinny que tinham feito as histórias com que eu me deleitava, e que ele ali entrevistava, biografava e analisava. Aquelas imagens eram o meu mundo, e afinal podia escrever-se sobre ele.
Talvez outros miúdos também tenham descoberto aí que é possível escrever sobre imagens. Que a cultura visual e a cultura escrita não estão em oposição. Que ambas, como a cultura musical, teatral, e outras, são assim como um comentário à abundância, ironia e diversidade da vida. E sim, que Vasco Granja tinha razão: pode ser-se culto visualmente. Uma cultura visual rica pode conduzir a um gosto pelas coisas bem feitas e bem desenhadas, imaginativas e belas. Uma cultura visual rica pode dar-nos um mundo melhor, e isso pode começar a um sábado de manhã, com uma selecção de obras de arte muito diferentes umas das outras. Algumas que nos fazem sorrir imediatamente. Outras que ainda não esquecemos anos depois.
Na caixa de comentários do PÚBLICO que deu a notícia do falecimento de Granja, um leitor escreveu "konec". Um pouco mais abaixo, outro já tinha escrito "that's all folks!". Para várias gerações de portugueses, essas palavras só querem dizer uma coisa: obrigado, Vasco.
Rui Tavares

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