04/06/10

Arte

Foi ele próprio quem me abriu a porta. Era velho, notava-se, mas ainda mantinha a figura. Tinha um copo na mão e falava de coisas que não tinha nada a ver com nada. Detesto quando fazem isto, mas não podia fazer nada - a hora era dele. Surpreendeu-me a ausência de aspereza na voz. Delicado, perguntou-me se queria beber alguma coisa. Tenho por princípio não complicar as coisas. Disse-lhe que aceitava o mesmo que ele estava a beber.
Ele pôs-me então a divagar. Não me importo de ouvir, faz parte do meu trabalho. Talvez ele quisesse falar. É mais comum do que a maior parte da gente julga. E nem precisamos de fingir muito que os estamos a ouvir.
Gosta de livros?, perguntou o velho.
Encolhi os ombros. Sei muito bem reconhecer quando uma pergunta busca uma resposta ou é apenas o embalo para outras arengas.
Eu gosto de livros, completou. Nem precisam de ser muito interessantes, ou inteligentes, ou divertidos. Um livro não precisa de ter grandes pensamentos, nem sequer de me fazer pensar, disse o velho.
Basta dar-me vontade de pensar - assim como uma azeitona no martini, antes da refeição, serve para abrir o apetite, não para comer.
Pousou o copo. Pousou o copo mas não pousou a palavra.
Continuou a arengar:
O livro é, digamos, uma azeitona líquida, aromática. Ora aqui está uma boa definição de arte: uma azeitona líquida, aromática.
Eu não sabia o que dizer. Arranjei um pouco a saia sobre os joelhos, apenas para ocupar as mãos enquanto ele não me dizia o que queria de mim.
O bom quadro é aquele que faz a criança, quando o vê, ficar com vontade de desenhar. Não sei quem disse isto, alguém disse isto, não fui eu que disse isto, mas era preciso lembrar isto, por isso o faço.
Sei que é pouco profissional, mas perdi a paciência e perguntei:
O que quer que eu faça? Que tire a roupa?
Que tire a roupa é boa ideia, disse o velho.
E depois?
Depois arranjar-se-á decerto alguma coisa para lhe ocupar as mãos. E a boca, acrescentou, com um sorriso difuso, entre o malicioso e o triste.

Rui Zink

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